quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sr. R no Porta Literal

Rumo à Groenlândia para ver o fim do mundo
por Bruno Dorigatti

"Vou lá. Vou ver o começo do fim", diz o Sr. R
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Sr.R é um improvável documentarista octagenário, carioca que já rodou o mundo trabalhando e agora, como que para animar o fim de sua vida, decide acompanhar de perto o degelo das calotas polares na Groenlândia. Isso mesmo. E, nos preparativos da viagem, vamos acompanhando e conhecendo um pouco mais sobre essa figura, sua amiga Camélia, o cachorro desta, Dollo, e o narrador, que partirá igualmente com seu amigo, cúmplice e companheiro rumo ao extremo norte do planeta enquanto ainda há tempo. A prosa poética envolvente, irônica, humorística por vezes, de Alberto Renault – conhecido por seu trabalho em direção, roteiro e cenografia para óperas, teatro, moda e tv – prende a leitura, junto com um certo estranhamento, neste curto romance que se lê de um só fôlego. Segundo Fernanda Torres, na orelha do livro, "muitas vezes, temos a impressão de que não vale a pena fazer parte de um mundo vil e muito menos de enfrentar as atribulações da velhice, com suas gotas, dores reumáticas e doenças degenerativas. O Sr. R é a contramão desse sentimento; uma injeção de aventura, coragem, delicadeza humor, amor, sexo e generosidade".Eclético, o octagenário “gosta de navios cargueiros, povos distantes, filosofia oriental, mais indiana do que chinesa, e conhece de cor todas as músicas do Gonzagão. Esse é o Sr. R, um Câmara Cascudo do universo. Um Gilberto Freyre globalizado. Um Mario de Andrade virtual. O Thomas Friedman de um mundo plano furado feito um queijo gruyère. O Peter Singer da ética cotidiana. O Manuel Bandeira das palavras disfarçadamente singelas”, escreve Alberto Renault sobre a figura caquética e ao mesmo tempo vigorosa, “um homem pela qual a sua filha se apaixonaria – mesmo como ele está agora, já meio ceguinho, já se apoiando e fazendo caminhada entre a sala e o banheiro um passeio”.Longe de qualquer intenção realista, apesar da inegável urgência do tema cada vez mais presente e constante em nossas vidas – ontem, por exemplo, foi anunciado por pesquisadores britânicos que as geleiras da Groenlândia estão perdendo 9 metros de profundidade por ano desde 2003 –, Alberto Renault utiliza o aquecimento global para tratar de outro fim. Aqui a abordagem é outra, unindo a metáfora do fim da vida e do fim de uma vida. “Eu diria que o Sr. R (Aeroplano, 2009) é uma fábula. Não é uma narrativa realista. Esse personagem não está em busca apenas do desmanche. Ele está em busca da (sua) vida que está ‘derretendo’. Ele busca com essa viagem ‘congelar’ o tempo – viver eternamente. Mais do que ‘o fim do mundo’ o que me impressiona é o ‘fim deste mundo’. Passei a olhar para os velhos também – para o ‘fim’ da vida, de uma era, de um tempo. É inegável que estamos vivendo uma grande transformação. Uma nova atitude face a vida deveria estar surgindo. Minha inspiração é a época que estamos vivendo”, conta Renault. A morte, um assunto tão caro para Renault, é um dos temas do livro, o aniquilamento travestido no aquecimento global. “Não trato do assunto aquecimento global de maneira científica – nem tenho conhecimentos para isso, mas não preciso ser um cientista para afirmar que o aquecimento e o desmanche das calotas polares estão acontecendo”, conta.Mais que uma prosa poética, Renault considera o livro um poema em prosa, onde, dentro das maiores catástrofes, o drama individual humano não cessa. “Seja em que época for, seja qual for o pano de fundo social ou histórico, o homem continua vivendo sua ‘vidinha’. Acho que olhando o último iceberg derretido, vendo a Amazônia tornar-se cerrado, o homem ainda vai apaixonar-se, vai sentir saudade da mãe morta; seu coração ainda pode disparar de amor no meio de um incêndio...”Sem ser melancólico, a pequena e enxuta narrativa é muito permeada pelo humor, a ironia, e até um deboche sobre o alardeado fim dos tempos e este eterno adiamento de tratar a sério a questão, como neste trecho:“No forno, está guardada parte de sua coleção colossal da revista Geográfica Universal. A metáfora do mundo assando no forno, ele só percebeu quando perguntei onde estava um número especial sobre a Amazônia que queria emprestado, e ele respondeu com uma pausa tchecoviana, e, logo depois, às gargalhadas: ‘A Amazônia está no forno!’”No fundo, uma ode à vida, crê Renault. “O Sr. R tem quem goste muito dele, quem o ame. E ele tem carinho pela vida também. Tem curiosidade. Tem infindável curiosidade. Tem criatividade face a vida. Procura sensações. Mas não vejo nele um modelo – vejo suas fraquezas também. E às vezes mais que um personagem esse Sr. R representa para mim o desejo de viver, de ‘sofrer’ tudo que a vida oferece e o que podemos também nos oferecer. Gosto muito de viver. Muito. E acho que faço bem isso – não gostaria que acabasse. Fico triste quando sinto que uma festa boa está caminhando para o fim...”Sr. R (Aeroplano, 2009) é seu terceiro livro, depois de A foto (Objetiva, 2003) e Moko no Brasil (Aeroplano, 2006), estes último com uma abordagem mais pop, em uma história que entrelaça jovens cariocas e japoneses no Rio de Janeiro. A narrativa, assim como em A foto, se aproxima de outras linguagens, como a televisão. O que mudou na feitura entre os dois primeiros livros e Sr. R ? “Apesar dos personagens velhinhos e de uma linguagem por ora mais poética ainda acho que minha abordagem é pop no sentido que mixo elementos e linguagens. Cito Nair Belo, Cauby Peixoto e Bach quase na mesma página. Falo de sushi e de santos medievais. O personagem dá a volta ao mundo buscando placas de ruas. Salto no tempo entre o passado, o presente e o imaginado futuro dos personagens. Acho que a linguagem deste livro é a de um monólogo dito em voz alta. Ouço a voz da narrativa. Não acho que mudei tanto – acho que ainda trabalho através de fragmentos e cenas curtas. Acho que é o mesmo vinho de outra safra”, acredita Renault, que trabalha na televisão, escrevendo em dirigindo séries – como “Minha Periferia”, “Muvuca”, “Brasil Legal”, “Um pé de quê?”, “Nomes da moda” –, dirige óperas, faz cenários para desfiles de moda. E como esses trabalhos dialogam com a literatura? “Acho que todos os meus trabalhos dialogam entre si – no sentido que crio imagens. Sr. R é um livro ‘de imagens’. Não tenho muito a tendência à psicologia. Acho que existe sempre um cenário, uma imagem para o leitor (ou espectador) construir visualmente a partir de minhas palavras. A literatura me dá a possibilidade de ‘narrar’ – acho que meus cenários, minhas cenas documentais na TV, todos os outros trabalhos sempre buscam criar um ‘sentimento’ e uma ‘narrativa’ – acho que sou ‘afetivo’ nas minhas criações. A literatura me deu afeto.” Afeto e, poderíamos acrescentar, lirismo para refletir um mundo que caminha para auto-destruição, conforme nos diz, à certa altura, o narrador: “Em mil e trezentos anos, nunca antes tão quente.Animais que deveriam hibernar estão alertas.Flores agora escancaradas estariam fechadas e cobertas por neve em outra época do ano.A montanha branca está verde.”